Publicado em 24 de abril de 2020 por Migalhas Está claro que manifestações como essas não encontrarão amparo na liberdade de expressão ou na livre manifestação de pensamento, quando configurarem – como parecem ter configurado – crime descrito na lei 7.170/83, que, como dito acima, é, ironicamente, herança legislativa do regime militar. Nossa história recente, por diversos motivos – mas principalmente por divergências políticas polarizadas de forma fanática – fez surgir inúmeros movimentos extremistas que clamam pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal em alusão ao Ato Institucional número 5 (AI-5) de 1968, do Governo Costa e Silva. Historiadores, em sua maioria, concordam que referido ato institucional inaugurou o período mais sombrio do Governo Militar, e talvez um dos mais sombrios da república, pois, decretou o fechamento do Congresso Nacional, pela primeira vez desde 1937, e autorizou o Presidente a decretar estado de sítio por tempo indeterminado, demitir pessoas do serviço público, cassar mandatos, confiscar bens privados, privar os cidadãos de direitos e garantias (como o direito de se manifestar quando a motivação era política e a garantia do habeas corpus) e intervir em todos os Estados e municípios. Segundo as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, o AI-5 “era uma ferramenta de intimidação pelo medo, não tinha prazo de vigência e seria empregado pela ditadura contra a oposição e a discordância.1” Ainda assim, hoje, referidos cidadãos manifestam-se publicamente – em manifestações ou através de páginas nas redes sociais – clamando pelo retorno de tal modelo de política. Tudo isso, obviamente, sob a égide da Constituição que, segundo eles, lhes garante a liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento. Primeiro, deve-se destacar que, de fato, a liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento não são absolutos, uma vez que devem ser conjugados de forma harmoniosa com os demais direitos e garantias individuais e, por isso, não permitem a expressão do discurso de ódio, do discurso criminoso e, em relação ao tema em apreço, do discurso antidemocrático. Esse discurso antidemocrático, claramente, lesa ou tem a intenção de lesar o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito. Ironicamente, a Lei que estabelece ser crime, lesar ou expor a perigo de lesão o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito é de 1983, ou seja, a Lei que reprime essas manifestações pró Golpe de 64 entrou em vigor durante o Governo Militar, por isso, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Referida Lei é extremamente clara e não encontra qualquer óbice na Constituição de 88, ou seja, foi recepcionada e continua vigente, posto que não revogada por nenhuma lei posterior. Diz a Lei: Art. 1º – Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I – a integridade territorial e a soberania nacional; II – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III – a pessoa dos chefes dos Poderes da União. (destaque nosso) Os artigos 16 e 17 da Lei de Segurança Nacional tipificam: Art. 16 – Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça. Pena: reclusão, de 1 a 5 anos. Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único.- Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro. Resta evidente, portanto que qualquer ato que vise a derrubada autoritária e violenta do Congresso (Poder Legislativo) e do Supremo Tribunal Federal (Poder Judiciário) fere o regime democrático representativo, o regime vigente e o Estado de Direito. Aqui, é válido lembrar que os três poderes são equivalentes, ou seja, o Executivo, na figura do Presidente da República não possui mais poder que os demais e, por isso, não pode – como esperam alguns fanáticos afoitos – determinar a extinção dos outros poderes, como ocorreu com o AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional (Poder Legislativo) na década de 60. Não se diga que os movimentos em questão não visam a alteração do regime por meios violentos, uma vez que ao se clamar pela ação das forças armadas e afirmar, como certo Deputado Federal, que para fechar o STF bastaria um cabo e um soldado, resta evidente e escancarada a ação por meio da força e não de forma democrática e participativa. Evidente, portanto, que o agrupamento ou organização de pessoas com essa finalidade configura o crime descrito no artigo 16 da lei 7.170/83. O artigo 17, por seu turno, demanda um passo além, a ação propriamente dita, visando à tomada do poder, e a derrubada do regime democrático vigente. O artigo 22 da aludida Lei tipifica, outra conduta amoldável ao ocorrido nas recentes manifestações pró AI-5, note-se: Art. 22 – Fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; II – de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; III – de guerra; IV – de qualquer dos crimes previstos nesta Lei. Pena: detenção, de 1 a 4 anos. § 1º – A pena é aumentada de um terço quando a propaganda for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão. § 2º – Sujeita-se à mesma pena quem distribui ou redistribui: a) fundos destinados a realizar a propaganda de que trata este artigo; b) ostensiva ou clandestinamente boletins ou panfletos contendo a mesma propaganda. Portanto, a Lei em questão tipifica a propaganda ou a manifestação pública em favor de ato violento de tomada do poder e quebra do regime democrático representativo instaurado pelo AI-5 que, por si só constituiu e constitui um modelo de tomada violenta e antidemocrática do poder e isso, é indiscutível. Além disso, o artigo 23 da mesma lei diz ser crime: Art. 23 – Incitar: I – à subversão da ordem política ou social; II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis; III – à luta com violência entre as classes sociais; IV – à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. (destaques nossos) Mais uma vez a Lei tipifica inúmeras condutas supostamente praticadas durante as manifestações, merecendo destaque o fato de alguns agentes políticos terem, em discursos inflamados, clamado pela ação das forças armadas contra o Congresso, o Supremo e os opositores da atual gestão federal. Por isso, o Procurador Geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal, no último dia 20 de abril a instauração de inquérito para que fossem apurados tais crimes, em razão das manifestações públicas ocorridas na semana anterior. O inquérito terá relatoria do Ministro Alexandre de Moraes que já determinou sua abertura.2 Assim, está claro que manifestações como essas não encontrarão amparo na liberdade de expressão ou na livre manifestação de pensamento, quando configurarem – como parecem ter configurado – crime descrito na lei 7.170/83, que, como dito acima, é, ironicamente, herança legislativa do regime militar. __________ 1 SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 455. 2 Clique aqui __________ *Tadeu Teixeira Theodoro é advogado, sócio do escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo – USP. Clique aqui para acessar a matéria.
A Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83) e as manifestações que pedem o fechamento do Congresso Nacional e do STF, ou, ironicamente, a mão que afaga é a mesma que apedreja
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