Entenda o que são as Regras de Mandela e sua aplicação no Sistema Penitenciário Brasileiro

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As chamadas Regras de Mandela surgiram em 1955 e seu nome é uma homenagem ao grande líder sul africano Nelson Mandela. Ao longo de 55 anos, os Estados usaram as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos como um guia para estruturar sua Justiça e os sistemas penais.

Em 22 de maio de 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) oficializou um quadro de normas, incorporando novas doutrinas de direitos humanos para tomá-las como parâmetros na restruturação do atual modelo de sistema penal e percepção do papel do encarceramento para a sociedade, oportunidade em que editaram as chamadas Regras de Mandela.

No decorrer deste breve artigo, é possível entender o que são as Regras de Mandela, qual é o foco das Regras de Mandela, qual é o objetivo das Regras de Mandela, além da atuação do Departamento Penitenciário (DEPEN) e da Polícia Penal.

O que são e qual é o foco das Regras de Mandela?

As Regras de Mandela são diretrizes mínimas a serem observadas pelo Estado para o tratamento de reclusos. As Regras de Mandela foram criadas pela ONU e passaram por uma importante revisão no ano de 2015, nas quais foram incorporadas mais garantias com o intuito e foco de assegurar tratamento digno às pessoas em situação de privação de liberdade.

Qual o objetivo principal da chamada Regras de Mandela?

O objetivo principal das Regras de Mandela é estabelecer, como o próprio nome diz, regras aceitas como bons princípios e práticas no tratamento dos reclusos e na gestão dos estabelecimentos prisionais, sem a pretensão de descrever, de maneira pormenorizada, um modelo de sistema prisional.

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A título de exemplo, vejamos, abaixo, o que ditam alguns parágrafos das Regras de Mandela:

“Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade do ser humano. Nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos reclusos, do pessoal do sistema prisional, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada.”

“Os objetivos de uma pena de prisão ou de qualquer outra medida restritiva da liberdade são, prioritariamente, proteger a sociedade conta a criminalidade e reduzir a reincidência. Estes objetivos só podem ser alcançados se o período de detenção for utilizado para assegurar, sempre que possível, a reintegração destas pessoas na sociedade após a sua libertação, para que possam levar uma vida autossuficiente e de respeito para com as leis. Para esse fim, as administrações prisionais e demais autoridades competentes devem proporcionar educação, formação profissional e trabalho, vem como outras formas de assistência apropriadas e disponíveis, incluindo aquelas de natureza reparadora, moral, espiritual, social, desportiva e de saúde. Estes programas, atividades e serviços devem ser facultados de acordo com as necessidades individuais de tratamento dos reclusos.”

Em uma simples leitura das Regras de Mandela percebe-se, claramente, que o sistema carcerário do Brasil está bem aquém de cumprir o patamar mínimo estabelecido. Não é informação nova trazer à baila que o sistema penitenciário brasileiro é caracterizado por problemas seríssimos e desumanos como a superlotação, insalubridade, péssimas condições de assistência à saúde, guerra entre facções entre outros.

Outro ponto importante, é que dentre as alterações nas Regras de Mandela, que aconteceram no ano de 2015 ficou estabelecido um teto de 15 dias para o isolamento solitário – Regra 44: Para os objetivos destas Regras, o confinamento solitário referese ao confinamento do preso por 22 horas ou mais, por dia, sem contato humano significativo. O confinamento solitário prolongado referese ao confinamento solitário por mais de 15 dias consecutivos.

Qual é a atuação do DEPEN e da Polícia Penal referente às Regras de Mandela?

No Brasil, este isolamento, previsto nas Regras de Mandela, vem disciplinado na Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84), no artigo 52, inciso I, com o nome de Regime Disciplinar Diferenciado, que estabelece 360 dias para o isolamento, e pode ser renovado por até 1/6 do limite da pena – o que demonstra total disparate com a previsão contida nas “Regras de Mandela”.

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O DEPEN é o órgão federal que acompanha e controla a aplicação da Lei de Execução Penal e das Diretrizes da Política Penitenciária Nacional, é o responsável pelo Sistema Penitenciário Federal, cujos principais objetivos são o isolamento das lideranças do crime organizado, cumprimento rigoroso da Lei de Execução Penal e custódia de presos condenados e provisórios sujeitos ao Regime Disciplinar Diferenciado e a Polícia Penal é a responsável por manter a ordem e disciplina no interior das unidades prisionais, bem como no âmbito externo.

Outro aspecto relevante diz respeito às presas parturientes [1]. Antes da alteração de 2015, as Regras de Mandela nada dispunham quanto a esse assunto. Em 2015, as Regras de Mandela estabeleceram a proibição de que presas parturientes sejam algemadas no parto e pós-parto. No Brasil, não há legislação que proíba o uso de algemas nas referidas situações, no entanto, o Estado de São Paulo proibiu a prática em 2012.

Enquanto as Regras de Mandela se aplicam de forma geral a todos os reclusos, é importante que se diga que, com relação às mulheres presas, existem as Regras de Bangkok, regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.

As Regras de Bangkok foram esquematizadas e surgiram em razão de as mulheres terem demandas e necessidades muito específicas, o que não raro é agravado por históricos de violência familiar e condições como a maternidade, nacionalidade estrangeira, perda financeira e uso de drogas, não sendo possível fechar os olhos para esse cenário e para a distinção dos vínculos e relações familiares estabelecidos pelas mulheres e a forma como se envolvem nos crimes.

Segundo dados do DEPEN, em dezembro de 2019, o encarceramento feminino chegava a 37.200 (trinta e sete mil e duzentas) mulheres e, no mapeamento realizado em março de 2020, do total de mulheres presas, 821 são mães de crianças até 12 anos de idade, 434 possuem idade igual ou superior a 60 anos; 4.052 eram portadoras de doenças crônicas ou respiratórias.

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O Brasil ocupa, tragicamente, o 3º lugar no ranking dos países com o maior número de pessoas presas no mundo, de acordo com os dados do Sistema de Informações Estatísticas do DEPEN (INFOPEN), publicado em fevereiro de 2020. Esse número demonstra um reflexo de política criminal ineficaz e aponta que o país encarcera muito e de maneira desordenada, deixando de oferecer condições dignas nas prisões, revelando uma crise crônica, que exige medidas urgentes para sua superação.

O Brasil, até o momento, não tem essas normativas, Regras de Mandela e de Bangkok, repercutidas em políticas públicas. O que demonstra a carência do país em valorização das normas de direito internacional dos direitos humanos.

Em um belíssimo exemplo de utilização eficaz das Regras de Mandela, com os olhos voltados à dignidade da pessoa humana decisão monocrática, o il. Ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu conceder a liminar para suspender os efeitos do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) no Agravo em Execução n. 7004836-44.2014.8.26.0344 e manteve o paciente sob livramento condicional, nos termos em que tal benesse lhe foi concedida pelo Juízo das Execuções Criminais, até o julgamento final do writ, pleiteada nos autos do Habeas Corpus nº 360.907 – SP, do qual é relator, decisão datada de 13 de junho de 2016,

Para tanto, o il. Ministro se baseou nas chamadas “Regas Mínimas para o Tratamento de Reclusos”, elaboradas pelas Nações Unidas, também conhecidas como “Regras de Mandela” (Mandela´s Rules), que servem como um guia para estruturar a justiça dos Estados e o Sistema Penal, fornece orientações atualizadas e precisas, com instruções para enfrentar a negligência do poder público.

No Habeas Corpus acima mencionado, o Ministro Rogério Schietti Cruz, com muita propriedade, invocou as referidas Regras de Mandela para manter o paciente sob livramento condicional, sob o seguinte argumento:

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“(…) Aliás, de acordo com a Regra 91 do novo quadro de normas editado pela Assembleia Geral da ONU em 2015 – e amplamente divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça -, ‘o tratamento de presos sentenciados ao encarceramento ou a medida similar deve ter como propósito, até onde a sentença permitir criar nos presos a vontade de levar uma vida de acordo com a lei e autossuficiente após sua soltura e capacitá-los a isso, além de desenvolver seu senso de responsabilidade a autorrespeito’ Guiado por essa bússola, permito-me desprestigiar as razões outrora também por mim acolhidas – que levaram a Corte bandeirante a cassar a decisão que concedeu ao paciente o seu livramento condicional. Não posso permanecer insensível à situação daquele que, depois de anos segregado da vida em sociedade, convivendo, por seus graves erros, com as mazelas do confinamento, não apenas apresenta bom comportamento carcerário e condições subjetivas reconhecidas em avaliações social e psicológica, mas, ao deixar provisoriamente os limites impostos pelas grades e enfrentar as barreira imposta para a superação dos deslizes e no emprego lícito, com registro em sua carteira de trabalho, buscando, agora, a retidão em sua conduta.

À vista do exposto, defiro a liminar para suspender os efeitos do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Agravo em Execução n. 7004836-44.2014.8.26.0344 e manter o paciente sob livramento condicional, nos termos em que tal benesse lhe foi concedida pelo Juízo das Execuções Criminais, até o julgamento final deste writ.

(…).”

O Governo Brasileiro participou de forma efetiva das negociações para elaboração das Regras de Mandela até a aprovação na Assembleia das Nações Unidas. No entanto, até o momento, muito pouco foi feito para sua efetiva aplicação em políticas públicas no país, que, diga-se de passagem, precisa, urgentemente, valorizar e colocar em prática normas de direito internacional referentes aos direitos humanos.

  Ana Maria Fernandes Ballan da Costa
Cláudia Seixas Sociedade de Advogados


[1] Regra 48.2. Os instrumentos de restrição não devem ser utilizados em mulheres em trabalho de parto, nem durante e imediatamente após o parto.

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