O tipo penal de “violência institucional”, a vítima no processo penal e a humanização do Processo Penal no Brasil

Sim, os oficiais de polícia podem entrar em residências sem um mandado em quatro hipóteses. Leia o artigo e descubra quais são.

A humanização do Processo Penal no Brasil:

Há tempos se busca dar uma maior humanização ao processo penal, seja no tratamento com o suposto autor do delito, seja no tratamento com a vítima.

É nesse sentido que a legislação processual penal tem avançado consideravelmente na forma de tratamento do investigado/acusado que, em homenagem ao princípio acusatório, às garantias fundamentais e aos direitos humanos, deixou de ser considerado objeto do processo, para se tornar a principal personagem no processo penal, uma vez que ele é um sujeito de direitos e merece especial atenção e tratamento.

Em contrapartida, especialmente em se tratando dos crimes sexuais, a sociedade brasileira, historicamente, é extremamente machista e preconceituosa a ponto de “criminalizar” vestimentas e comportamentos por parte da vítima, em especial quando se trata de mulheres, numa evidente tentativa de “justificar o injustificável”, pois aquele tipo de roupa por ela utilizado seria demasiadamente provocativa e inapropriada, ou mesmo que aquele local ou horário não seriam adequados para uma mulher estar presente e, assim, ela estaria “dando margem” para que algo acontecesse.

Obviamente que isso é inaceitável!

É evidente que a sociedade sofreu grande evolução nas últimas décadas, porém, é inegável que ainda há um longo caminho a ser percorrido e o legislador é responsável por, através da elaboração do texto legal, participar ativamente dessa necessária evolução, tornando a legislação mais atualizada e adequada, dando maior evidência à evolução da humanização do processo penal no Brasil.

Relembre o caso que deu origem à Lei 14.321/2022, tipificando o crime de Violência Institucional:

Rememora-se que o Projeto de Lei que deu origem ao crime de violência institucional surgiu como reação à ação penal onde se apurava eventual delito de estupro envolvendo a modelo Mariana Ferrer – vítima –, uma vez que, durante audiência de instrução, foram expostas pelo causídico de defesa e sem guardar qualquer relação com os fatos, fotos sensuais da vítima, que teria sido, ainda, humilhada e ridicularizada.

Ainda, desacreditada com o que lhe ocorria, Mariana Ferrer solicitou ao Magistrado que impedisse tal constrangimento, todavia, não houve qualquer interferência de sua parte ou do representante do Ministério Público.

O episódio gerou grande repercussão na mídia, bem como na comunidade jurídica, recebendo atenção, inclusive, do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que, com grande dose de indignação, se posicionou no seguinte sentido em uma rede social:

“As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram.”

Foi diante de caso, deveras, assombroso e da grande repercussão midiática, que o Legislador Ordinário viu a necessidade de, enfim, buscar a proteção da vítima e da testemunha de prática delituosa, dando origem, então, ao PL 5091/20.

O tipo penal da Violência Institucional:

Diante da evidente necessidade – acima identificada – de o legislador participar ativamente do processo evolutivo do tratamento às vítimas e testemunhas de práticas delituosas, bem como de dar maior acolhimento pelo sistema de Justiça que, recentemente, entrou em vigor a Lei 14.321/2022 – PL 5091/20 –, de autoria da Deputada Federal Soraya Santos (PL/RJ), em coautoria com outros deputados, instituindo o tipo penal denominado “violência institucional” que, não à toa, foi inserido na Lei 13.869/2019 – Lei de Abuso de Autoridade –, dando a seguinte redação ao artigo 15-A:

Violência Institucional

Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I – a situação de violência; ou

II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

  • 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
  • 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro. “

Inicialmente, é importante tecer uma crítica, uma vez que o artigo 15-A, da Lei 13.869/2019, prevê que os possíveis sujeitos passivos do crime de violência institucional serão a vítima de infração penal – portanto, a vítima de crimes com ou

sem violência e de contravenções penais –, e testemunha de crimes violentos, excluindo, expressamente e, a nosso ver, sem justificativa plausível, as testemunhas de crimes que não envolvam violência e as contravenções penais, porém, ainda assim é um evidente avanço.

Superada a crítica inicial, tem-se que o sujeito ativo será o agente público que praticar as condutas previstas no caput e que leve a vítima ou testemunha de crime violento a reviver, sem estrita necessidade, situação de violência ou qualquer situação potencialmente geradora de sofrimento ou estigmatização; permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização (§1º); que intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização (§2º).

Já o sujeito passivo será a vítima de infrações penais e/ou a testemunha de crimes violentos que seja vítima das condutas tipificadas no artigo.

Analisando o caput e os incisos I e II, é manifesta a preocupação do legislador em criminalizar a indevida submissão da vítima de práticas delituosas e a testemunha de crimes violentos a quaisquer procedimentos que não sejam aqueles estritamente necessários para o melhor deslinde das investigações ou da instrução processual, e que a leve a reviver situação de violência – inciso I – e, outras situações potencialmente geradoras de sofrimento e estigmatização – inciso II –.

Nota-se claramente que, no inciso II, o legislador se preocupou em coibir a submissão da vítima e da testemunha – esta última, limitada aos crimes violentos –a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos que a leve a reviver situações que possam gerar sofrimento ou, ainda, estigmatização, visando proteger tanto a sua imagem quanto a sua integridade psicológica.

Ao incluir o crime de violência institucional no ordenamento jurídico, embora o legislador não tenha elaborado um rol, ainda que exemplificativo, a fim de dar uma ideia sobre hipóteses que poderiam caracterizar essas outras situações, pressupõe-se a intenção de proibir e punir toda e qualquer situação desnecessária que possa gerar sofrimento ou estigmatização à vítima e a testemunha de crimes violentos.

É evidente, entretanto, que não basta que o procedimento pelo qual a vítima ou testemunha de crime violento foi submetida seja repetitivo ou invasivo, ou que lhe cause abalos emocionais/psicológicos para a configuração do crime de violência institucional, uma vez que, caso a caso, esse procedimento poderá ser necessário ou, inclusive, primordial para o melhor deslinde dos fatos, como, por exemplo, a submissão da vítima de estupro, ou roubo – caso haja violência física –, ao exame de corpo de delito, ou realizar o reconhecimento de pessoas ou coisas.

O que se visa coibir é a realização ou repetição de procedimentos que não deveriam ser realizados naquele caso concreto, e que causem a rememoração de situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento e estigmatização.

Assim, a desnecessidade do procedimento imposto pela autoridade (policial ou judiciária) deverá ser evidente a ponto de não se cogitar tratar de mera divergência de interpretações, o que desconfiguraria o crime, de acordo com o artigo 1º, §2º da Lei 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade)[1].

Já o §1º do artigo 15-A é evidentemente um crime omissivo, praticado exclusivamente pelo funcionário público, ao permitir que terceiro intimide vítima de crimes violentos, causando-lhe a indevida revitimização.

É mais uma infelicidade do legislador, uma vez que o sujeito passivo é reduzido apenas à vítima de crimes violentos, e não mais à vítima de qualquer infração penal, excluindo-se ainda, a testemunha de qualquer tipo de infração penal.

[1] Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.

(…)

  • 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

Nota-se que a conduta prevista no §1º é diversa da presente no caput e, além disso, ao invés de ser o agente quem causa o mal à vítima, aqui, o agente público permite que terceiro o pratique sem que haja a sua necessária interferência.

Verifica-se claramente o intuito do legislador que, além de proibir a ação delituosa do agente público (caput), também criminalizou a sua omissão ao verificar um terceiro intimidando a vítima de crime violento apta a causar-lhe indevida revitimização.

Nesse caso, o julgador acrescerá à reprimenda a fração de 2/3 (dois terços).

Finalmente, o §2º trata da situação em que o próprio agente público é o responsável direto pela intimidação da vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, oportunidade em que a pena será aplicada em dobro.

Aqui, verifica-se claramente que o sujeito ativo do crime de violência institucional será apenas o agente público que seja quem, diretamente, intimidou-a, gerando o mal previsto no §2º.

Diferentemente do caput do artigo 15-A, mais uma vez e sem uma justificativa plausível, nota-se que o legislador limitou o sujeito passivo ao mencionar apenas as vítimas de crimes violentos, excluindo, automaticamente, vítimas de quaisquer infrações penais onde não se verifique a prática de violência, bem como qualquer testemunha, ainda que de crimes violentos.

Dessa forma, tecidas algumas considerações acerca da deficiência em sua redação, trata o crime de violência institucional de novo tipo penal inserido propositadamente na Lei 13.869/2019 (Lei de Abuso de Poder), como resposta do Poder Legislativo a uma situação escabrosa vivenciada pela vítima durante a instrução processual que gerou grande repercussão midiática.

Fernando Jorge Roselino Neto

Advogado, sócio do escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados

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