A Pandemia Dentro do Cárcere e o Fortalecimento da Necropolítica

Pandemia Dentro do Cárcere

O colapso das penitenciárias brasileiras não é uma adversidade pontuada em debates atuais; os presídios, há tempos, não comportam o número de detentos, a reincidência é aceita como fato e a ressocialização enquadra-se no rol dos mitos (intoleráveis) que nosso país carrega.

É notório que a solução estabelecida pelo Estado é o encarceramento em massa e a relativização de preceitos constitucionais que rezam acerca dos reais propósitos da pena privativa de liberdade.   

Faz-se mister pontuar, primeiramente, que a restrição da liberdade é questionável, há muito, em dias que não fogem à normalidade. Seria razoável sua manutenção indistinta, frente a uma pandemia que se apresenta com gravidade clínica e grande transmissibilidade, conforme se observa pela letalidade diária?

O Estado poderia ter se mostrado humanizado diante dos problemas atuais, contudo, optou por manter seu poder positivo, atuando com disciplinamento verticalizante, e opondo-se a enxergar que o sistema carcerário reflete um campo sensível, que requer entendimento de sua complexidade e, ainda, consciência dos reflexos que as decisões extramuros têm no mundo dos presídios.

A análise de cada caso concreto não rompe com a cadeia de integridade do Direito. Pelo contrário, reforça que a aplicação da lei não restringe-se ao requisito formal – sob pena de suportar inúmeras injustiças advindas do apego exacerbado ao formalismo – mas também o substancial.

As proporções faraônicas que os riscos epidemiológicos chegaram são evidentes no mundo externo; no sistema carcerário esse cenário mostra-se como um verdadeiro vetor de propagação do vírus. Há, mais do que nunca, um massacre, que a maioria da sociedade e do Poder Estatal consentem, de direitos fundamentais dos reclusos. Surge, neste cenário, a recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de

Justiça que, na teoria, visa fugir de decisões massificadas e obter análises justas de cada caso nesse período de pandemia.

Diante da seleção natural elaborada pelo Estado, onde o sistema carcerário não tem vez, há o início da aplicação da política negacionista, quando, em 08 de abril, o primeiro detento testa positivo. A supracitada política se alicerça no questionamento da gravidade da doença, e contrapõe-se às orientações de epidemiologistas e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Combatendo o isolamento social, que, até o momento, é o meio efetivo de desacelerar o número de infectados.

Nessa linha, surge um segundo ponto a ser questionado: é digno que haja menção ao isolamento social em um país que conta com uma superlotação carcerária que cresce em níveis exponenciais? A manutenção do encarceramento indistinto incide, na verdade, na Necropolítica, teoria desenvolvida por Achille Mbembe – filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronense. (AIRES; RODRIGUES, 2018).[1]

A Necropolítica seria o estado de exceção. De certa forma, uma adaptação que põe em prática a política estatal de morte, não se aproxima de forma alguma de um combate à criminalidade, há, na verdade, um desdobramento persecutório. A escolha de proteção do Estado.

Leciona a pesquisadora Rosane Borges que “O que se tem é a perseguição daquele considerado perigoso. A necropolítica reúne esses elementos, que são reflexíveis e tem desdobramentos que a gente pode perceber no nosso cotidiano, na nossa chamada política de segurança.” (FERRARI, 2019).[2]

As decisões acerca do Sistema Prisional brasileiro opõem-se a lógica; a “solução” colocada em prática foi a proibição de visitas aos presos, o que, além de enquadrar um novo meio de punição pelos mesmos delitos que já foram condenados e em virtude disso encontram-se cerceados de sua liberdade, é, também, um comprometimento com o auxílio material que é levado nas visitas, como produtos de higiene, essenciais no combate ao vírus Covid-19.

Há, diariamente, novas “Leis de Talião” sendo colocadas em pauta como soluções anticrime; mas, que os momentos difíceis possibilitem maior sensatez e extrema atenção à amplitude das ações humanizadas, abrindo espaço ao real objetivo da pena privativa de liberdade.

Afinal, de que valeria a liberdade extramuros ante a perda da essência humana, que olvida como sanear a equação mortal: pandemia x cárcere? Quando houver o acerto de contas com a história, que não seja necessário carregar o peso insustentável da inércia.

Carolina Coaglio Ferreira

Estagiária do Escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados

 


[1] AIRES, Suely; RODRIGUES, Carla. Dossiê: a leitura de Achille Mbembe no Brasil. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-leitura-de-achille-mbembe-no-brasil/. Acesso em 13 mai. 2020.
[2] FERRARI, Mariana. O que é necropolítica e como se aplica à segurança pública no Brasil. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2019/09/26/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/. Acesso em 13 mai. 2020.
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