O Interrogatório do Réu como Último Ato da Instrução

O Interrogatório do Réu como Último Ato da Instrução

Em tempos sombrios e de claras afrontas à Constituição Federal, pesa dizer, pelo próprio órgão que deveria ser o “guardião” da nossa Lei Maior, o papel do advogado criminalista tem se destacado. O que antes não preocupava tanto, hoje é motivo de noites sem dormir na busca de encontrar um freio para essa mania nacional de “se fazer justiça, custe o que custar”, ex vi o entendimento firmado no STF a respeito da possibilidade de execução provisória da pena, mesmo antes do trânsito em julgado da condenação. Mas, que tipo de justiça seria esta, que ofende a Constituição da República Federativa do Brasil?

É dever do advogado criminalista – que não pode se esquecer, jamais, que lida com um dos direitos mais caros ao cidadão, que é o direito à liberdade – lutar para que o efetivo direito defesa de seu cliente seja respeitado. Hodiernamente, vê-se como “normais” violações que, claramente, ferem a garantia do devido processo legal e os seus corolários – ampla defesa e contraditório.

No entanto, todas as normas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, sem exceção, devem ser lidas e entendidas de acordo com as garantias e princípios retro mencionados. Nenhuma delas pode escapar dessa leitura conforme à constituição.

Dentre tantos outros dispositivos legais que são, uns mal escritos e, outros, mal interpretados no dia-a-dia forense, nesta oportunidade daremos atenção aos §§ 1º e 2º do artigo 222 do Código de Processo Penal.

Como se verá, os argumentos que servem para justificar a possibilidade de permanência do § 1º do art. 222 do CPP no ordenamento jurídico pátrio, desde que interpretado conforme à CF, também servem para concluir que o § 2º do referido dispositivo não tem salvação: é nitidamente inconstitucional.

É de conhecimento de todos os operadores do direito que atuam no contencioso, que as partes podem arrolar testemunhas fora do juízo natural da causa. E isso também ocorre no processo penal, por força do art. 222 do estatuto adjetivo. O sistema, nesses casos, determina que o juízo da causa expeça cartas precatórias para ouvir, no local de suas residências, as testemunhas que não residem na comarca onde tramita o processo.

Diz o §1º do art. 222 do CPP:

“§ 1º A expedição da precatória não suspende a instrução criminal”

A celeuma surge por conta do momento em que o réu será interrogado. A interpretação que vigora em relação ao referido artigo é a literal, ou seja: havendo testemunhas a serem ouvidas fora da comarca, seria lícito ao juiz interrogar o réu antes mesmo da oitiva destas testemunhas.
E é esse tipo de interpretação (a literal) que está em total descompasso com o ordenamento jurídico pátrio.
Isso porque o interrogatório do acusado é o ato mais importante do processo. É tão importante que nem mesmo sua defesa técnica pode dispensá-lo. É o ato onde o acusado terá a oportunidade de se defender e, eventualmente, contra-argumentar as acusações que foram feitas a ele.

Ora, parece óbvio que, se uma testemunha – principalmente de acusação – for ouvida após o interrogatório do acusado, a possiblidade de sua autodefesa restará prejudicada, porque ele não poderá esclarecer, ou mesmo contra-argumentar o que ela disse.

É claro que muitos argumentariam que, nesse caso, a defesa poderia requerer seu reinterrogatório ao juízo. Porém, quem garante que o juiz deferirá a ele tal direito? E quem garante que os tribunais lhe conferirão novamente o direito de audiência? Tem-se visto na prática, como já se disse no início deste artigo, decisões tão aviltantes à Constituição Federal que não se tem qualquer garantia de que o direito de defesa será, efetivamente, preservado, quer seja pelo juiz, quer seja pelos Tribunais do país.

Além de ser a única forma de garantir o efetivo contraditório e a ampla defesa, deixar para ouvir o réu após terem sido ouvidas todas as testemunhas – especialmente as de fora da comarca de origem do processo – também garante a economia processual, gerando menos gasto ao Estado.

É espantoso que ainda hoje se interprete literalmente o §1º do art. 222 do CPP, mesmo com todas as mudanças que o direito processual brasileiro vem sofrendo.

A importância do ato do interrogatório foi realçada pela lei 10.792/03, que trouxe, expressamente, a obrigatoriedade de que o referido ato observe o efetivo contraditório, possibilitando, além do magistrado, às partes fazerem questionamentos ao acusado.
Alguns anos mais tarde, em 2008, por força das modificações trazidas pela lei 11.719/08 ao estatuto adjetivo, o interrogatório passou a ser o último ato da instrução:

“Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado”.

Não é preciso grande esforço para se perceber que a ressalva contida no referido dispositivo, que se reporta ao artigo 222 do CPP, ocorre antes de o legislador mencionar o interrogatório do acusado.

É forçoso concluir, pela posição topográfica da ressalva contida, portanto, que o juiz não precisa aguardar, por exemplo, o retorno de uma carta precatória expedida para oitiva de uma testemunha de acusação para iniciar a oitiva de eventuais testemunhas de defesa que residem na comarca.

Mas, como a ressalva é feita somente na parte que menciona sobre a ordem das testemunhas, continuando o artigo a prever os atos seguintes, entendemos que ela não se encaixa em relação ao interrogatório do réu. Trocando em miúdos: mesmo que haja cartas precatórias expedidas, o interrogatório do réu deve ser o último ato da instrução.

E nesse ponto chega o momento de mencionar o (inconstitucional) § 2º do art. 212 do CPP, pois é nele que os defensores da possibilidade de se interrogar o réu, mesmo antes do retorno de carta precatória expedida para oitiva de testemunha (máxime, repise, em relação à testemunha de acusação), se escoram, como se ele resolvesse, como mágica, as falhas contidas nessa famigerada legislação processual penal.
Referido dispositivo é nitidamente inconstitucional. Isso porque ele – pasmem – autoriza que a causa seja julgada mesmo sem a devolução da carta precatória ao juízo e, nesse caso, está implícita a possiblidade de o juiz interrogar o acusado antes mesmo de ter sido ouvida, por carta precatória, a testemunha de fora da terra (seja ela de acusação ou defesa).

Não é preciso ser do ramo do direito para se compreender o absurdo desse dispositivo. Como é possível permitir que o juiz julgue um processo criminal antes mesmo de saber o que disse, por exemplo, uma testemunha presencial, só porque ela foi ouvida fora da comarca de origem do processo? Nada justifica a existência de referido dispositivo no sistema jurídico pátrio: nem a celeridade da justiça, nem a possibilidade de se recorrer ao tribunal de justiça/regional federal para corrigir eventual prejuízo, nem o interesse da sociedade na solução breve do mérito da causa. Nada!

Em se tratando de processo penal uma única regra deve orientar os julgadores: o respeito amplo ao amplo direito de defesa! Porque, acima de tudo, está-se lidando, repisa-se, no processo penal, com a liberdade de ir e vir do cidadão.

Fato é que o § 2º do art. 222 do CPP não permite nem mesmo uma interpretação conforme à Constituição Federal, como é o caso §1º, do referido dispositivo. Não se concebe que o juiz julgue sem verificar todas as provas que existem no processo, porque uma delas pode significar a ponte entre a justiça e a injustiça! E essa ponte pode ser justamente a testemunha ouvida por carta precatória.

Dito isso, voltemos à análise do § 1º do art. 222 do CPP. Este dispositivo, por sua vez, tem salvação: se for interpretado conforme a Constituição Federal; ou seja, ele só é constitucional se ele for interpretado como sendo possível que haja, sim, a inversão na produção da prova oral, desde que nessa inversão não esteja incluída o interrogatório do acusado, que deve ser sempre o último ato da instrução.

É dizer: ao juiz é válido ouvir uma testemunha de defesa da comarca de origem antes do retorno da carta precatória expedida para a oitiva de uma testemunha de acusação. Mas jamais o magistrado poderá interrogar o acusado antes do retorno da referida carta precatória, pois (i) é direito do acusado ter conhecimento de tudo que foi dito a seu respeito durante o processo (para isso serve o contraditório e a ampla defesa) e (ii) é dever do juiz garantir que o acusado tenha o direito de contra-argumentar qualquer testemunha ouvida sob o crivo do contraditório.
Ora, não teria o menor sentido alterar-se todo o procedimento comum do processo penal – o que ocorreu com a promulgação da lei 11.719/08 – para colocar o interrogatório do réu por último e, ainda assim, criar uma válvula de escape para que isso não ocorra, pois a ratio legis foi justamente a preservação do direito de defesa.

Ao transferir o interrogatório do acusado para o final da instrução, é óbvio que o legislador pretendeu prestigiar o direito de o acusado exercer sua autodefesa, oportunidade em que poderá rebater qualquer fato que entenda inverídico, descabido. E isso só poderá ocorrer, efetivamente, se ele realmente for o último a ser ouvido.

Sendo assim, somente se se interpretar conforme a constituição o §1º do art. 222 do Código de Processo Penal é possível conferir-lhe efetividade; já com relação ao § 2º, resta somente a inconstitucionalidade.

Parafraseando o MM. Magistrado federal Ali Mazloum, da 7ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo[1], em tempos de baixo comprometimento com a Constituição Federal, parece incorreto dizer que deve-se sacrificar a celeridade da prestação jurisdicional em prol do direito de defesa do acusado; mas é isso que precisa ser feito, pois, caso contrário, jamais haverá aplicação efetiva dos famigerados princípios da ampla defesa e do contraditório no processo penal.

 

Flávia Elaine Remiro Goulart Ferreira

Cláudia Seixas Sociedade de Advogados

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

Receba informações sobre assuntos jurídicos por e-mail

Preencha o formulário a seguir e inscreva-se em nossa Newsletter para receber conteúdos exclusivos!