Aborto e Anencefalia – Considerações sobre o julgamento do STF

Nos últimos dias o Supremo Tribunal Federal foi novamente o centro das atenções, pois colocou em pauta para julgamento a discussão relativa à autorização, ou não, do aborto de anencéfalos.

Mais do que análise jurídica, o julgamento gerou muita expectativa por parte de seguimentos religiosos, ONGs contra o aborto e profissionais da medicina.

A questão foi amplamente debatida na sessão colegiada do STF e ao final, por maioria de votos, o aborto de anencéfalos não foi considerada prática ilegal. É o que se extrai do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54.

A polêmica residia na possibilidade de reconhecimento do direito da gestante de não levar a gravidez a diante, desde que fosse impossível a vida extrauterina e nesse caso não seria necessária autorização do Estado para realização do procedimento.

A Procuradoria Geral da República emitiu parecer asseverando que a impossibilidade de sobrevivência de vida extra uterina já é um grande sofrimento para a gestante e seus familiares e cerceá-la de não dar continuidade a essa gestação, só tende a agravar ainda mais seu sofrimento e abalo psicológico.

Nesse caso, o entendimento da Procuradoria foi o de que cabe a gestante a escolha de levar ou não a gravidez até o fim, devendo ser visto como conduta atípica o aborto, pois não lesa os bens preservados pela lei, já que não há vida em potencial, tratando-se de natimorto cerebral.

Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio, relator do caso, abriu suas considerações, dizendo não ser caso que possa ser entendido como aborto eugênico, pois não se enquadraria no conceito da eugenia que pressupõe vida extrauterina e foge aos padrões morais aceitos (deficiência física como pés tortos, ausência de membros, sexo dúbio, etc).

A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico, o que inviabiliza a vida extrauterina.

Na visão do ilustre Ministro Relator, o tema envolve a dignidade humana e não haveria justificativa capaz de compelir a mulher a se submeter a tal situação. Por outro lado, o relator deixou claro que o Estado não é religioso e nem tampouco ateu. É, isto sim, NEUTRO e sob esse aspecto a questão posta não pode ser analisada sob a influencia de questões morais, religiosas ou éticas.

O voto do Ministro Relator foi extremamente baseado em posturas e conceitos médicos, trazendo inclusive o diagnóstico de anencefalia como ausência de cerebelo e tronco cerebral, além da ausência de estímulos dolorosos.
Noutro giro, há clara contraposição da condição clínica em face da condição cerebral, ou seja, ausência de batimentos cárdio- respiratórios e atividade elétrica/metabólica cerebral.

Continuando em seu voto, o Relator disse que não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. O direito tutela a vida e circunstâncias de morte e ainda lembrou do caso Marcela que era feto com cérebro que apresentava deficiência, mas com condições de vida extra uterina ainda que precárias. Esse caso não era diagnóstico de anencefalia.

Com o reconhecimento do direito de escolha da mulher de levar ou não uma gestação a diante, torna-se ainda mais importante um diagnóstico de certeza da anencefalia, o que certamente implicará em melhorias de capacitação técnica dos profissionais e dos recursos dos locais envolvidos nessa avaliação.

Não se desconhece que esta questão, mesmo que já julgada pelo STF, gerará, ainda, inúmeros debates. Se por um lado há pessoas que entendem que até mesmo por razões espirituais o aborto não deveria ter sido admitido nesses casos de anencefalia, há pessoas que partilham do entendimento do relator do caso da ADPF 54 e pensam que manter o feto para possível doação de órgãos nesse caso, é coisificar a mulher, ou seja, trata-la como objeto para atingir um fim.

O tema movimentou a opinião pública nos últimos dias, mas vale a reflexão lançada pelo Ministro Relator: “gerar um filho para enterra-lo fere a dignidade da mulher”.

Nas palavras da relatoria, o feto é um cidadão na anti-sala da vida civil e mesmo sem a previsão legal do Código Penal de 1940, não parece lógico que os dispositivos existentes tutelem tal situação.

Nesse contexto, o julgamento privilegiou o direito de escolha da mulher, analisando a questão por aspectos eminentemente jurídicos e técnicos, não prevalecendo qualquer pensamento religioso ou posturas morais que parte da opinião pública sustenta.

Como disse o próprio Ministro Relator, não respeitar a vontade da mulher nesse caso é realmente “coisificá-la”, pois se é evidente a ausência de vida extra uterina, levar a gravidez durante os nove meses só teria uma razão: acalentar o coração da mãe movida por sentimento ou convicção religiosa de que gerar o filho com anencefalia faça parte de alguma missão que Deus lhe reservou.

Ainda, este tema também deverá ser pensado e analisado sob uma outra ótica, qual seja, a possibilidade de erros de diagnóstico da anencefalia. Reside aí o alerta ou temor de grande parte das pessoas que discordam do aborto.

É necessário deixar bem claro o conceito médico de anencefalia, que de forma inequívoca atesta ausência de vida extrauterina. O temor no diagnóstico falho é em relação aos casos em que a vida extrauterina seria possível ainda que em condições precárias.

Em outras palavras, há receio de que seja fechado um diagnóstico de anencefalia, com a consequente antecipação terapêutica do parto em situações que haveria a mínima possibilidade de vida extrauterina.

A nosso ver, o julgamento da ADPF 54 foi determinante para a discussão sobre início da vida e circunstâncias de morte em contraposição a Princípios Constitucionais e Direitos Fundamentais e as situações cotidianas certamente dependerão de complementos e análises pormenorizadas de todos detalhes que envolvem o aborto nesses casos.

Portanto, o julgamento da ADPF 54 reconheceu como atípica a conduta de antecipação terapêutica do parto, quando tratar-se de situação de anencefalia, desde que essa condição seja inequívoca e diagnosticada por profissional devidamente capacitado.

Significa dizer que nos casos em que a anencefalia for certa e devidamente diagnosticada, a gestante não dependerá de autorização do Estado para antecipar o parto, deixando a sua livre escolha levar ou não a gestação até o fim.

Mônica Santiago Oliveira Amaral Carvalho

Advogada do escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados

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